ERNST HAECKEL – SUA IMPORTÂNCIA PARA A HISTÓRIA RECENTE DA BIOLOGIA.

Ernst Heinrich Philipp August Haeckel foi um zoólogo, naturalista, filósofo, médico, professor anatomista e artista alemão muito importante para a história recente da biologia e teoria da evolução. Embora fosse um excelente anatomista de espécies de invertebrados seu trabalho mais famoso foi com o grupo Radiolaria, focado em biologia marinha. Muitos conceitos atuais da biologia foram cunhados por ele, outros, especulativos que ele defendeu, hoje são considerados incorretos.

Recapitulação de Haeckel

Haeckel nasceu em Potsdam, (Prússia) em 1834 e morreu em 1919. Por ser, dentre tantas virtudes um artista e ilustrador, ajudou a popularizar o trabalho de Charles Darwin, e foi um representante assíduo do cientificismo (Encyclopaedia Brittanica). Descreveu e nomeou várias espécies novas, e elaborou uma arvore de relacionamentos evolucionários incluindo todas as formas de vida conhecidas em sua época. As contribuições de Haeckel à zoologia foram bastante conhecidas, especialmente as ideias de seu mentor, Johannes Müller, argumentando que os estágios embrionários em um animal recapitulavam a história de sua evolução, e, portanto, a ontogenia é uma recapitulação da filogenia.

Haeckel também foi um dos primeiros cientistas a considerar a psicologia como um ramo da fisiologia. Ele desenvolveu conceitos e definições científicas que são utilizados até os dias de hoje, como por exemplo: filo, ecologia, antropogenia, filogenia e por fim, descreveu o Reino Protista em 1866. Seus principais interesses em pesquisa eram sobre processos evolutivos, de desenvolvimento e na ilustração científica. Em sua obra “Kunstformen der Natur” apresentou diversas ilustrações de diferentes grupos de seres vivos.

Esquema evolucionário de Ernst Haeckel apresentado em forma de árvore.

A vida de Haeckel foi simples, comum, como a de qualquer outro cientista. Cresceu em Merseburg (Alemanha), onde seu pai era funcionário do governo. Ele recebeu uma educação evangélica na escola “Domgymnasium” até 1852, onde concluiu seus estudos. Estudou medicina nas Universidades de Würzburg, Viena e Berlim. Sua vida médica foi curta, abandonou a medicina e quando voltou para a Universidade de Jena (UC Berkeley, 2004) desenvolveu interesse pelo estudo da anatomia comparada, embriologia e investigações microscópicas: onde iniciou seus estudos em zoologia marinha. Em 1854 conheceu Johannes Müller, um especialista no assunto que estudou gerações de crustáceos e vermes marinhos (Koehler, 1921). Haeckel então publicou em 1864 o que é considerado a primeira pesquisa que constituiu em uma filogenia exaustiva das espécies estudadas partindo da teoria da seleção natural de Darwin e sustentando empiricamente a sua tese sobre a especiação.

Com a morte de Johannes Müller, seu doutorado foi orientado pelo anatomista Karl Gegenbaur, que o incentivou a fazer uma viagem ao Mediterrâneo. Como fruto desta viagem, feita entre 1859 e 1860, ele criou uma coleção de 150 radiolários (grupo protistas ameboide encontrado no oceano formados por uma cápsula interna central, esférica e perfurada, constituída de quitina e ligada a um esqueleto formado por espículas de sílica em forma de agulha) que foram a base para a publicação de sua monografia “Die Radiolarien” dois anos depois.

Ernst Haeckel (1834-1919) biólogo, naturalista, filósofo, médico, professor e artista alemão que ajudou a popularizar o trabalho de Charles Darwin.

Em 1861, assumiu o cargo de professor de anatomia comparada na Faculdade de Medicina da Universidade de Jena, onde após um ano, foi nomeado como professor de Zoologia da Faculdade de Filosofia, e em seguida, promovido a professor e diretor do Instituto de Zoologia, onde ficou até 1909.

Com a morte de sua esposa, em 1915, e uma série de problemas de saúde vendeu sua mansão (UC Berkeley, 2004). Morreu em 1919 em sua cidade. Atualmente, sua antiga mansão abriga um museu e um instituto de pesquisa para a história da ciência.

Haeckel errou em muitas de suas teses, a mais famosa é a da “recapitulação” onde os passos filogenéticos ocorreriam durante o desenvolvimento embrionários dos seres vivos; e foi acusado de fraude em suas ilustrações. Considerando a inimizade existente entre teoria evolutiva e fundamentalismo religioso – que infla debates calorosos até os dias de hoje – uma série de acusações foram atribuídas a Haeckel. A maioria delas coberta por sentimento de raiva que não revelaram-se verdadeiras, ou, ao menos são duvidosas. Estas, precisam ser analisadas a luz dos registros, especialmente as acusações de fraude, e de associação a ideologia nazista.

Haeckel errou parcialmente ao extrapolar a teoria da evolução sugerindo que as evidências de evolução humana seriam encontradas nas Índias Orientais Holandesas (atualmente a Indonésia). Considerando que naquela época, ainda não havia muitos registros fósseis de ancestrais humanos, ele descreveu esses registros de forma teórica, e em grande detalhe sugeriu até nome a essas espécies – Pithecanthropus alalus – instruindo seus alunos, como Richard e Oskar Hertwig, a procura-las. Um de seus estudantes encontrou alguns registros: um holandês chamado Eugène Dubois procurou nas Índias do Leste, entre 1887 e 1895, descobrindo os restos do Homem de Java em 1891. Consistindo em uma calota craniana, um fêmur e alguns dentes, estes registros estão entre os restos de hominídeos mais antigos já encontrados na história da ciência da evolução humana. Dubois classificou o Homem de Java como Pithecanthropus erectus de Haeckel, e posteriormente foram reclassificados como Homo erectus (Schwartz, 1987).

Pithecanthropus erectus atualmente re-classificado como Homo erectus. Fóssil encontrado na China

Alguns cientistas sugeriram (Schwartz, 1987) que o Homem de Java tinha uma potencial forma intermediária entre o homem moderno e o ancestral comum, que compartilhamos com os outros grandes símios. O consenso atual dos antropólogos é que os ancestrais ​​diretos dos seres humanos modernos eram populações africanas de Homo erectus (chamadas de Homo ergaster), ao invés das populações asiáticas exemplificadas pelo Homem de Java ou o Homem de Pequim (ironicamente, uma espécie humana, Homo floresiensis, foi descoberta na ilha de Flores).

Na época de Darwin e Haeckel, foi sugerida a hipótese do poligenismo criacionista a partir de Samuel George Morton e Louis Agassiz, que apresentaram os humanos negros e brancos como sendo espécies distintas, criadas separadamente: defendendo portanto, um casal de Adão e Eva brancos e um casal negro. Tal tese foi absolutamente rejeitada por Charles Darwin, que defendeu a monogênese da espécie humana e a origem africana dos humanos modernos. Em contraste com a maioria dos partidários de Darwin, Haeckel apresentou uma doutrina parcial de poligenismo evolutivo baseada nas ideias do lingüista August Schleicher, no qual vários grupos linguísticos diferentes haviam surgido separadamente de um pré-humano mudo, e estes, surgiram de ancestrais ​​símios.

Essas línguas separadas haviam completado a transição dos animais para o homem e, sob a influência de cada ramo principal das línguas, os seres humanos haviam evoluído, sob uma espécie de herança lamarckista – como espécies separadas de um ancestral e que podiam ser subdivididas em raças. Darwin pensava no oposto: sugerindo que tais divisões eram arbitrárias.

A partir disto, Haeckel extraiu a implicação de que as línguas com maior potencial dão origem às raças humanas com maior potencial, lideradas pelos grupos semítico e indo-germânico, como as variedades berbere, judaica, greco-romana e germânica. Notamos então que os judeus não são sub-julgados.

Haeckel declarou então em Natürliche Schöpfungsgeschichte (1868):

“Devemos mencionar aqui um dos resultados mais importantes do estudo comparado das línguas, que para o Stammbaum [Árvore genealógica] das espécies de homens é da mais alta importância, a saber, que as línguas humanas provavelmente tiveram uma origem múltipla ou polifilética. A linguagem humana como tal provavelmente se desenvolveu somente depois que as espécies de Urmenschen ou Affenmenschen [Homem primitivo ou Homem-macaco] sem palavras se dividiram em várias espécies ou tipos. Com cada uma dessas espécies humanas, a linguagem desenvolveu-se sozinha e independentemente das outras. Pelo menos esta é a opinião de Schleicher, uma das principais autoridades neste assunto… Se alguém considerar a origem dos ramos da linguagem como o ato especial e principal de se tornar humano, e as espécies da humanidade como distinto de acordo com a sua língua, então, pode-se dizer que as diferentes espécies de homens surgiram independentemente umas das outras”.

A visão precursora de Haeckel defendia que as variedades humanas evoluíram independentemente e em paralelo umas com as outras é, no entanto, duvidosa. O fragmento acima retirado de sua obra Natürliche Schöpfungsgeschichte (1868) destaca condições específicas para quem acredita, ou “considera[r] a origem dos ramos da linguagem como o ato especial e principal de se tornar humano” segundo Schleicher – um especialista no assunto.

Ainda sim, apesar do componente poligenista, Haeckel parte de um ancestral comum para todas as variedades de homens, ainda que o critério utilizado por alguns autores para diferenciar tais variedades (como é o caso de Schleicher, ou quem o segue) seja definido pela língua. O que todos os cientistas – e até mesmo religiosos – estavam tentando fazer nesta época era classificar biologicamente o homem; e obviamente, tentando lidar com a diversidade de povos distintos.

Outros autores, ainda acusam Haeckel de ser proponente do darwinismo-social, ou, do racismo científico; embora, novamente, tais ideias atribuídas a ele sejam duvidosas. Geralmente, as citações que acusam-no de racismo são de terceiros. Contudo, era (e ainda é, em alguns casos) comum o caráter eurocêntrico em certas afirmações cotidianas.

O fato é que muitas narrativas apócrifas e descontextualizadas foram erguidas sobre tantos cientistas (e inclui-se Haeckel nesta miríade) que muitas vezes torna-se difícil separar as citações originais das leituras de terceiros. No caso de Haeckel, ele tem sido condenado por acusações de fraude no caso da ilustração dos embriões (o que é também bastante duvidoso) e associado, junto a Darwin, a cumplicidade com o regime nazista, ideologia fascista na Itália e na França e discursos ante-semíticos (que mostrou-se absurdamente contraditório).

A recapitulação filogenética na ontogenia.

Haeckel desenvolveu uma versão da teoria de recapitulação (ou, “Lei biogenética fundamental”) previamente estabelecida por Étienne Serres na década de 1820 e apoiada por seguidores de Étienne Geoffroy Saint-Hilaire incluindo Robert Edmond Grant. Haeckel sugeriu uma ligação entre a ontogenia (desenvolvimento da forma durante a embriogênese) e filogenia (descendência evolutiva), ou seja, “a ontogenia repete os passos filogenéticos“.

Tal conceito de recapitulação foi descartado na forma na qual Haeckel concebeu (chamada atualmente de “recapitulação forte”). Com a hipótese de recapitulação forte, Haeckel introduziu o conceito de heterocronia para a mudança no momento do desenvolvimento embrionário ao longo da evolução. A teoria é agora considerada uma simplificação excessiva e perdeu espaço para as ideias inicialmente avançadas por Karl Ernst von Baer: a recapitulação fraca. Nesta, que o que é repetido (e construído sobre) é o processo de desenvolvimento embrionário ancestral (Richards, 2009).

Karl Ernst von Baer (1792-1876) foi um biólogo, geólogo, meteorologista, médico e membro da Academia Russa de Ciências. Fundador da embriologia, embora evolucionista, foi crítico as ideias de Charles Darwin.

A tese da recapitulação de Haeckel foi publicada em 1899, e Haeckel defendeu que a repetição filogenética na ontogênese era condicionada pelas funções fisiológicas de herança (reprodução) e adaptação (nutrição). Segundo Haeckel, o indivíduo orgânico repete, durante o rápido e curto curso de seu desenvolvimento individual as alterações morfológicas mais importantes que seus ancestrais atravessaram durante o longo e lento curso de sua evolução paleontológica, seguindo as leis da herança e da adaptação. Haeckel percebeu que antes de nascer, há um momento em que os seres humanos parecem possuir fendas branquiais em seus pescoços – presentes somente nos peixes adultos. Haeckel utilizou isto para dizer que em algum momento na evolução a espécie humana apresentou características de um peixe. A teoria da recapitulação obteve grande prestígio e aceitação, durante o século XIX e exerceu bastante influência (para explicar, por exemplo, a Síndrome de Down), mas perdeu espaço para as ideias inicialmente avançadas por Karl Ernst von Baer.

Em 1826, von Baer descreveu o óvulo dos mamíferos, e no ano seguinte detalhou o desenvolvimento dos mamíferos a partir do óvulo em sua obra “Ovi Mammalium et Hominis genesi“. Nela, von Baer demonstrou pela primeira vez, não só a existência do óvulo, mas também os estágios da blástula e notocorda. Junto a Heinz Christian Pander (1794-1865) e ao trabalho de Caspar Friedrich Wolff (1734-1794), von Baer descreveu o desenvolvimento dos folhetos embrionários (ectoderme, mesoderme e endoderme) como um princípio de variedade das espécies. Desta maneira foi fundada a embriologia comparada, que descreveu em seu livro “Über Entwickelungsgeschichte der Thiere” em 1828 (Bibliographic Index – Baer Carl).

Von Baer formulou 4 leis básicas para a embriologia, compondo a teoria segundo a qual a ontogenia recapitula as formas embrionárias dos animais pertencentes ao mesmo plano:

1) As características gerais do grupo à que pertence um embrião aparecem no desenvolvimento antes das características específicas.

2) As relações estruturais específicas se formam depois das genéricas.

3) O embrião não passa por estágios pertencentes a outras formas específicas, ao contrário, separa-se delas.

4) O embrião de uma forma animal mais evoluída nunca se assemelha ao adulto de outra forma animal, porém somente ao seu embrião.

Clift & Schuh, 2013

Von Baer, assim como o geólogo/biólogo criacionista Georges Cuvier (1769-1832), acreditava na existência de quatro planos estruturais no reino animal: radiados, moluscos, articulados e vertebrados. Para eles, os planos estruturais são mutuamente independentes, e as séries de um mesmo plano não implicam em uma sucessão por transmutação no tempo, ou seja, não refletiam um processo evolucionário. Entretanto, com a publicação da “Origem das Espécies” de Charles Darwin em 1859, tanto a estratigrafia de Cuvier quando as definições de homologia e analogia do anatomista Richard Owen casaram-se brilhantemente com o processo de seleção natural e descendência com modificação sustentando a Teoria da Evolução. No caso da recapitulação forte, Haeckel produziu desenhos que agregavam várias semelhanças entre embriões de espécies relacionadas.

Em 1874, os desenhos dos embriões de Haeckel foram acusados de serem falsos. Em 1997, a revista Science publicou um artigo de M. K. Richardson, que argumentou que a extensão da fraude era maior, contribuindo para degradar a popularidade de Haeckel (Richards, 2009).

Embora tenha sido amplamente alegado que Haeckel falsificou imagens e tenha sido condenado por isto, as acusações não vem de uma fonte independente verificável para esta alegação (Richards, 2005). De fato, análises recentes (Richardson, 1998, Richardson e Keuck, 2002) descobriram que algumas das críticas feitas aos desenhos de embriões de Haeckel poderiam ser legitimas e outras completamente infundadas.

Não demorou muito para que criacionistas e defensores do design inteligente inflassem milhares de páginas na internet em uma manifestação conjunta de deturpação da reputação de Haeckel e a da teoria darwiniana, conjurando o nome de Deus como engenheiro desenhista, como fez o Discovery Institute: organização doutrinária com raízes fundadas em movimento fundamentalistas/anti-científicos criacionista. Mesmo uma consulta rápida na Wikipedia sobre a vida de Haeckel nota-se uma série de fontes de sites criacionistas ou citações cuja procedência é duvidosa. A vertente anti-científica e negacionista da evolução rapidamente inflou o caso e sucessivamente vem repetindo o mito da fraude de Haeckel e sua suposta cumplicidade a regimes autoritários.

As citações de pesquisadores sérios que criticaram Haeckel foram feitas por ilustres cientistas, como o paleontólogo Stephen Jay Gould, que em diversas obras tenta separar a proposta de evolução de Darwin e Haeckel.

Desde a publicação de seu livro Ontogeny and Phylogeny (1977), Gould tenta separar duas concepções evolutivas distintas, a de Haeckel e a de Darwin: especialmente sobre a ideia de que o desenvolvimento de um dado embrião morfologicamente recapitulava a história evolutiva de seu filo.

Em 1874 Haeckel publicou sua obra “Anthropogenie: oder, Entwickelungsgeschichte des Menschen” (Anthropogenia: ou a História de Desenvolvimento do Homem) fruto de uma série de palestras que ministrou no ano anterior. Foi a partir desta obra que as acusações de fraude surgiram, afirmando que ele tinha exagerado em suas representações e forjado as imagens dos embriões.

Várias considerações precisam ser feitas a respeito deste episódio: a primeira é que suas palestras foram públicas, e assim, alguma licença didática teria sido permitida ser utilizada. Haeckel era um biólogo marinho – não de vertebrados – embora altamente especializado neste último campo. Ele adaptou muitas de suas ilustrações, com reconhecimento de especialistas em biologia de vertebrados para facilitar a compreensão de suas palestras. Mesmo Darwin reconheceu que emprestou suas imagens de duas das fontes como fez Haeckel (Darwin 1871, p.16). Além disto, nas críticas direcionadas a Haeckel no artigo da Science em 1997, Richardson sugeriu que Haeckel falsificou a escala das dimensões dos embriões. Haeckel, no entanto, explicitamente declarou em suas ilustrações que ele dimensionou todas as imagens para o mesmo tamanho para facilitar comparações estruturais (Haeckel 1874, página 256).

Richardson e seus colegas selecionaram imagens da primeira edição da obra Anthropogenie de Haeckel e usou para fazer suas críticas. O livro de Haeckel, no entanto, passou por cinco outras edições. A cada nova edição o texto se adensava conforme mais evidências surgiam e nele eram introduzidas; a ilustração acusada de fraude expandiu a comparação de 8 espécie de embriões nas primeiras edições para 20 na 5ª edição (1905). Nas edições sub-seqüentes, as imagens ficaram cada vez mais refinadas, de modo que até a 4ª edição (1891), as diferenças entre eles se tornaram mais pronunciadas (figura abaixo). Os refinamentos dos dados foram ocorrendo em função de mais materiais disponíveis e melhor instrumentação. Por esta razão as acusações de fraude a Haeckel são infundadas, duvidosas e soam como falsas.

Ilustrações de Ernst Haeckel, Anthropogenie, 4a ed. (1891) apud Richards, 2009.

Muitos dos embriões fotografados continham a saco da gema unido e outro material materno; exagerando as diferenças de imagens de Haeckel. Entretanto, ele indicou explicitamente que ele pintou seus espécimes sem a gema, alantóide e amnion (Haeckel 1874, página 256). De fato, no caso do embrião de ave (pintinho) foi fotografado em uma orientação circunflexa, que ocorre em um estágio um pouco mais atrasado do desenvolvimento do que aquele representado por Haeckel. Entretanto, novamente, Haeckel declarou expressamente que orientava seus embriões no mesmo plano para facilitar a comparação.

Usando um programa de computador para remover as gemas nas fotografias, reduzir a salamandra e endireitar o modelo da ave, o resultado é claramente que as diferenças entre a fotografia e ilustração não são grandes como os apresentados no artigo da revista Science.

Na primeira edição de sua obra Natürliche Schöpfungsgeschichte (História Natural da Criação) em 1868, ele usou modelos de madeira cortada para representar a formação inicial de embriões de cão, pintinho e tartaruga. Quando um revisor pontuou este modelo (Rütimeyer 1868), Haeckel se justificou argumentando que não poderia demonstrar as diferenças entre estes vertebrados durante aquela fase embrionária porque era muito precoce; e dado a instrumentação da época, isso era evidente. Ele reconheceu, no entanto, que errou e imediatamente corrigiu o texto na próxima edição de dois anos mais tarde. Mas o dano foi feito, e seus inimigos nunca deixaram de lembrar aos leitores seu passo em falso. Por isto acusam-no de ter feito e assumido tal falsificação (Richards, 2009) reduzindo o fato a uma leitura com viés anti-evolução.

Haeckel e Darwin Apoiaram a Ideologia Nazista?

A ideia de que o regime nazista e suas vias de extermínio foi influenciada por Haeckel se popularizou em 1971 com Daniel Gasman, em seu livro “Scientific Origins of National Socialism: Social Darwinism in Ernst Haeckel and the German Monist League”.

Posteriormente, Gould e muitos outros estudiosos se esforçaram para distinguir as concepções de Darwin das de Haeckel. Entretanto, esta distinção fica mais difícil quando nota-se que Darwin escreveu a Haeckel em 1864:

“Estou encantado com o fato de um naturalista tão distinto confirmar e comentar minhas ideias; posso ver claramente que você é um dos poucos que claramente compreende a Seleção Natural”.

Darwin, 1864

E ainda:

“Quase todas as conclusões a que cheguei, vejo-as confirmadas por esse naturalista [Haeckel], cujo conhecimento em muitos pontos é muito mais completo do que o meu”.

Darwin, 1871

A princípio, isto relacionaria Darwin e Haeckel a uma ideologia de extermínio, se não fosse o fato de que Haeckel – e Darwin – nunca foi anti-semita, e suas ideias jamais foram utilizadas pelo regime nazista – por exclusão dos próprios nazistas.

Acontecimentos históricos complexos, como o holocausto exigem causas igualmente complexas para lhes dar conta, e a concepção científica da evolução biológica nunca esteve na base dos ideais nazistas, pelo contrário, Haeckel e toda ideia ligada a transmutação das espécies foi rejeitada categoricamente porque não contemplavam a concepção filosófica do regime.

Devemos contextualizar antes de levantar testemunhos: primeiramente, a Europa do século XIX passava por diversas avanços científicos, tecnológicos e comerciais que pareciam confirmar suposições sobre sinais divinos. A descoberta de fósseis cada vez mais complexos em camadas estratigráficas aparentemente indicava um desenvolvimento progressivo durante a história geral da vida na Terra (Richards, 2012).

Esta visão progressiva combinava-se com a crença de que os vários grupos humanos também poderiam ser organizados em uma hierarquia de acordo com suas propriedades progressivas. O esforço para classificar e avaliar as raças humanas não começou na época de Darwin ou Haeckel, mas muito anteriormente.  Em meados do século XVIII, Carolus Linnaeus (1707-1778) e Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840) sistematicamente começaram a classificar as diversas raças humanas e avaliar seus atributos biológicos. No início do século XIX, o geólogo/biólogo criacionista Georges Cuvier dividiu a espécie humana em três variedades: caucasiana, a mais bela e progressiva; a mongol, cujas civilizações haviam estagnado; e a etíope, cujos membros exibiam um “crânio reduzido” e características faciais de um macaco.

Concepções históricas de raça tomadas na História Natural segundo o Barão Georges Cuvier (1890). A esquerda os Etíopes, no centro os Mongols, e a direita a noção de Cuvier das diferenças entre um orangotango e um Europeu (caucasiano) tomando o negro como intermediário.

A própria Constituição Americana reconheceu tais atributos hierárquicos quando afirmou os direitos de propriedade dos titulares de escravos e estipulou que os africanos residentes deveriam ser contados como três quintos de uma pessoa para fins de decidir a representação do Congresso (Richards, 2012).

Darwin, por sua vez, simplesmente procurou explicar os fatos presumidos das diferenças raciais, considerando os diferentes grupos como variedades de uma mesma espécie, a espécie humana. A decisão entre classificar as diferentes raças em espécies distintas ou na mesma era, para ele, meramente arbitrária, uma vez que não seria possível estabelecer uma fronteira real entre espécies e variedades/raças. Esta concepção de Darwin fica nítida quando suas crenças abolicionistas foram fortemente confirmadas ao visitar os países escravos da América do Sul no início da década de 1830. Em especial ao Brasil (Bahia e Rio de Janeiro – 1832), na qual Darwin ficou admirado com sua diversidade de formas de vida ao mesmo tempo que condenou profundamente a escravidão e o tratamento que era dado a escravos.

Darwin também torceu pela derrota dos estados escravos do sul durante a guerra civil Americana (Richards, 2012).

Haeckel seguiu a mesma linha: em suas viagens ao Ceilão e à Indonésia, muitas vezes estabelecia relações preferencialmente mais próximas e íntimas com os nativos – incluindo membros das classes intocáveis – do que com os colonos europeus (Gasman, 1998).

A acusação que relaciona Haeckel com o racismo nazista não tem absolutamente qualquer fundamento prático. De fato, a realidade corre no sentido oposto. Em uma conversa que Haeckel teve em meados da década de 1890 sobre o tema do anti-semitismo em uma entrevista feita pelo escritor e jornalista austríaco Hermann Bahr, Haeckel mencionou que tinha vários estudantes adeptos a atitudes anti-semitas, mas que ele tinha muitos bons amigos entre os judeus, “homens admiráveis e excelentes”, e que esses grandes conhecidos não poderiam direciona-lo a qualquer atitude preconceituosa. Ele reconheceu o nacionalismo como o problema fundamental para aquelas sociedades que não tinham alcançado o ideal do cosmopolitismo (Richards, 2012).

Além disto, Haeckel elogiou aos judeus que sempre foram vitais para a vida social e intelectual alemã:

“Eu considero esses judeus refinados e nobres como elementos importantes na cultura alemã. Não se deve esquecer que eles sempre se mantiveram corajosamente em favor do esclarecimento e da liberdade contra as forças de reação, oponentes inesgotáveis, quantas vezes fosse necessário, contra os obscurantistas”.

Bahr, 1894

Um desses judeus intelectuais que Haeckel se referia era seu amigo pessoal Magnus Hirschfeld (1868-1935), médico e sexólogo, que considerava Haeckel um “herói espiritual alemão” (Hirschfeld, 1914). Durante o período de atividade do regime nazista, Hirschfeld teve que fugir para salvar sua vida e na virada do século, quando o anti-semitismo começou a se espalhar pela Europa, Haeckel se destacou por sua expressão Judenfreundschaft (simpatia para com os judeus) (Richards, 2012).

Deve-se destacar também que durante a Guerra Franco-Prussiana (entre 1870 e 1871), Haeckel descreveu-a como um fenômeno desprezível e destacou o que ele chamou de “seleção militar”: na qual os mais corajosos e brilhantes soldados eram massacrados nos campos de batalha, enquanto os fracos e covardes foram deixados em seus quartos perpetuando seu baixo caráter moral (Richards, 2012).

Na década de 1930, o regime nazista tentou fundar uma nova ordem política fundada em pontos de vista de intelectuais alemães de séculos anteriores. Por exemplo, Alfred Rosenberg, que era o principal propagandista do partido nazista declarou que Alexander von Humboldt (1769-1859) era uma destas mentes brilhantes que representava os ideais dos nacional-socialistas. Rosenberg só esqueceu de alguns pequenos detalhes: Humboldt era um cosmopolita e não nacionalista, amigo de judeus e era homossexual (Richards, 2012).

Haeckel também foi alistado na causa nazista por alguns acadêmicos ambiciosos, como Heinz Brücher, que afirmou que a concepção haeckeliana se relacionava claramente com as atitudes raciais de Hitler (Brücher, 1936). Imediatamente, em meados da década de 1930, os guardiães oficiais da doutrina do partido nacional-socialista anularam qualquer sugestão de relacionar-se com o darwinismo ou a Haeckel pelo tipo de filosofia proposta por seus membros. Günther Hecht, que representava o Departamento de Políticas Raciais do Partido Nacional-Socialista (Rassenpolitischen Amt der NSDAP) emitiu uma advertência claro e direta:

“A posição comum do monismo materialista é rejeitada em termos filosóficos, completamente pela visão völkisch-biológica do Nacional-Socialismo … O partido e seus representantes não devem apenas rejeitar uma parte da concepção haeckeliana – outras partes dela foram ocasionalmente avançadas – mas, em termos gerais, toda disputa interna de partido que envolve os detalhes da pesquisa e os ensinamentos de Haeckel deve cessar”.

Günther 1937/8

Junto a ela, foram expurgadas uma série de pensadores e obras que eram condenadas pelo partido nacional-socialista no Terceiro Reich. Entre as obras estavam as de “traidores”, como Albert Einstein, “democratas liberais”, como Heinrich Mann, a literatura de qualquer autor que fosse judeu e materiais produzidos por indivíduos defendendo o esclarecimento científico em qualquer forma de darwinismo como o apresentado por Ernst Haeckel. Assim, qualquer concepção ligada a temas específicos da biologia evolucionária e da transmutação das espécies era condenável, seja de origem animal ou dos seres humanos (Richards, 2012).

Em conclusão, notamos que muitas das alegações feitas em nome de Haeckel são duvidosas e carecem de fontes confiáveis. Tais alegações obscuras simplesmente complicaram a vida de um cientista que – de fato – errou em algumas de suas teses, e acertou em outras; mas que contribuiu para a divulgação e consolidação do pilar central da biologia atual, a evolução biológica. A degeneração da imagem de Haeckel acabou só contribuindo com o sentimento anti-científico e pseudocientífico de vertentes fundamentalistas religiosas que eventualmente revivem tais falsas alegações repetindo fontes não-confiáveis e arrebanhando mais proponentes do analfabetismo científico e negadores da base das ciências biológicas.

Mesmo grandes pesquisadores acabaram formalmente emitindo pareceres e artigos renegando a Haeckel influenciados por conteúdos ideológicos de outrem sem que as fontes e a veracidade de suas afirmativas fossem verificadas.

Victor Rossetti

Palavras chave: NetNature, Rossetti, Haeckel, Evolução, Darwin, Recapitulação, Embriões.

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Referências

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Gasman, D. Haeckel’s Monism and the Birth of Fascist Ideology (New York: Peter Lang, 1998), 26.
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